Há exatos dez anos, em 5 de novembro de 2015, o Brasil assistiu a uma de suas maiores tragédias — humana, ambiental e moral. A barragem de Fundão, em Mariana (MG), se rompeu despejando cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro no meio ambiente. Em poucos minutos, comunidades inteiras desapareceram sob a lama, 19 pessoas perderam a vida, centenas ficaram desabrigadas, e o Rio Doce, um dos mais importantes do Sudeste brasileiro, foi transformado num corredor de destruição que levou o desastre até o mar, no Espírito Santo.
Passada uma década, a ferida segue aberta. A tragédia de Mariana não ficou no passado — ela continua a se repetir, dia após dia, na vida de quem perdeu suas casas, suas terras e seus modos de viver. O que se observa é um processo de reparação lento, burocrático e, sobretudo, injusto. O que deveria ser um exemplo de responsabilidade e recuperação ambiental se converteu em símbolo de impunidade corporativa e conivência estatal.
Contudo, a barragem era de responsabilidade da Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton, duas gigantes da mineração que continuam a operar, a lucrar e a distribuir dividendos bilionários a seus acionistas. Enquanto isso, as vítimas esperam — há dez anos — por justiça e reconstrução. A Fundação Renova, criada em 2016 para gerir o processo de reparação, tornou-se o retrato da ineficácia e da falta de transparência. Prometeu devolver dignidade, mas entregou lentidão e descaso.
As empresas responsáveis fizeram do tempo um aliado: quanto mais ele passa, mais distante parece a possibilidade de punição efetiva. E o Estado, que deveria agir como guardião do interesse público, permanece leniente, limitado a discursos e ações pontuais. O resultado é um cenário em que a tragédia se perpetua — não mais pelo rompimento da barragem, mas pela omissão diante do sofrimento coletivo.
Para tanto, o rompimento de Fundão não destruiu apenas o meio ambiente. Dilacerou vidas, culturas e economias locais. Povos indígenas perderam territórios sagrados. Ribeirinhos e pescadores foram arrancados de suas margens e, com elas, de suas identidades. Famílias inteiras vivem até hoje em casas provisórias, dependendo de auxílios incertos, enquanto enfrentam a indiferença das empresas e a morosidade da Justiça.
O Rio Doce, antes fonte de vida, segue doente. Estudos apontam que grandes volumes de rejeitos ainda estão depositados em seu leito, contaminando ecossistemas e comprometendo a recuperação da fauna e da flora. E, ironicamente, uma década depois, pouco se fala sobre isso. O noticiário é esporádico, as autoridades se calam e as empresas se limitam a campanhas publicitárias que tentam reescrever a história com tintas de responsabilidade que não existe.
Em 2024, foi firmado um novo Acordo de Repactuação entre governos, Ministério Público e empresas, prometendo acelerar as reparações. No papel, parece um avanço. Na prática, repete os mesmos erros estruturais: ausência de participação efetiva das comunidades atingidas, exclusão dos comitês de bacia e concentração de decisões em esferas burocráticas e distantes da realidade local.
O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH Doce) — que reúne representantes técnicos e sociais comprometidos com a gestão das águas — não foi sequer consultado durante o processo. É o retrato de uma governança que insiste em ignorar quem está na linha de frente dos impactos. É o Estado mais uma vez dialogando com as mineradoras, e não com o povo.
Dez anos depois, a tragédia de Mariana é o espelho de um país que não aprendeu com seus próprios desastres. Quatro anos após Fundão, veio Brumadinho — novamente com a Vale, novamente com vítimas, novamente com promessas de mudança. A mineração continua a operar com falhas graves de fiscalização, as barragens seguem em risco, e as tragédias se tornam previsíveis.
O que está em curso é uma normalização da tragédia. O Brasil parece ter se acostumado à ideia de que desastres socioambientais são o preço inevitável do progresso. Não são. São o preço da ganância, da ausência de fiscalização, da conivência política e da falta de compromisso ético das corporações.
Dez anos é tempo suficiente para reconstruir cidades inteiras. Mas, no caso de Mariana, foi apenas tempo para construir um muro de indiferença. A justiça não puniu de forma exemplar. As reparações não chegaram a todos. O rio não se recuperou. E o país, infelizmente, continua a colocar o lucro acima da vida.
É urgente que o Brasil rompa com esse ciclo de impunidade e esquecimento. Que as empresas responsáveis paguem integralmente por seus crimes. Que os atingidos sejam finalmente ouvidos, indenizados e respeitados. Que o Rio Doce volte a ser um rio — e não um cemitério de promessas quebradas.
Portanto, a maior tragédia ambiental do país não está apenas nas imagens de 2015. Está em cada decisão adiada, em cada laudo ignorado, em cada silêncio conveniente. E enquanto o país não exigir justiça real, a lama continuará escorrendo — não mais das montanhas de Minas, mas das estruturas de poder que se recusam a mudar.
Por Cassiano Aguilar
Foto: Isabela Medeiros / Divulgação